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sábado, 27 de dezembro de 2008
Criança equilibrada e feliz
A infância é o tempo de explorar o mundo ao vivo e em cores, não só por meio da TV ou do computador. Os especialistas batem cada vez mais nessa tecla e explicam por que brincar faz toda a diferença para a saúde física, mental e emocional dos pequenos
Batatinha frita,1,2,3!
"Mamãe, posso ir? Quantos passos?" "Tá comigo! Comigo não tá!" Se você acha que as brincadeiras do passado não fazem sentido em pleno século 21, é hora de repensar o assunto. Em diversos países, inclusive no Brasil, estudiosos se debruçam sobre as mudanças radicais que a rotina dos pequenos sofreu nas últimas décadas - e já admitem que hábitos colocados em segundo plano, como correr, jogar bola e fazer bolinhos de areia, são muito mais importantes para a saúde física, mental e emocional do que se podia supor. "Brincar é uma necessidade básica, como dormir e comer, e deve ser a atividade primordial até os 6 anos", afirma a assistente social Marilena Martins, sócia-fundadora da Associação Brasileira pelo Direito de Brincar, braço da International Association for the Child's Right to Play (IPA). A entidade não é a única a empunhar a bandeira. "Para se tornar um adulto equilibrado e feliz, a criança precisa viver intensamente a infância. Os pais não podem se preocupar apenas com a inteligência, com o rendimento escolar, com o futuro profissional", alerta a pedagoga Nylse Cunha, autora de vários livros sobre o tema e presidente da Associação Brasileira de Brinquedotecas, filiada à Internacional Toy Library Association, que, com 46 representações no mundo inteiro, divulga a importância do brincar. São posições que, à primeira vista, parecem óbvias. Afinal, quem vai impedir, em sã consciência, que o filho brinque? A questão, ressaltam os especialistas, é o que se entende hoje por brincadeira - em geral, apenas jogos eletrônicos e televisão.
"Essa diversão, que está na ponta dos dedos, é puramente mental. Acontece que o ser humano não muda tão radicalmente de uma geração para outra. A criançada ainda precisa correr, se pendurar, passar por baixo e por cima, se mexer", diz o psiquiatra Içami Tiba, autor do best-seller QUEM AMA EDUCA! (ed. Gente). O pesquisador britânico John Richer, responsável pelo departamento de psicologia pediátrica do hospital John Radcliffe, em Oxford, na Inglaterra, vai além. Ao participar do II Fórum de Desenvolvimento da Criança, realizado em maio, em São Paulo, ele chamou a atenção para a ausência de contato da meninada com a realidade. "O medo da violência afastou as crianças das praças, fenômeno que se repete em muitos países. As que saem de casa brincam em playgrounds que, de tão seguros, são chatos. Não oferecem estímulos e ainda impedem que elas administrem riscos. Aprender sobre o mundo real implica tocá-lo, explorá-lo", ele explica.
A infância confinada causa prejuízos em diversas áreas do desenvolvimento. Na escola Anjo da Guarda, em Curitiba, a diretora pedagógica Luci Serricchio se preocupa com o que constata diariamente. "Os alunos são bem-informados, sabem usar qualquer aparelho e compreendem um manual como ninguém. Em compensação, mal começam a fazer uma atividade e querem pular para a seguinte. O poder de concentração foi seriamente afetado."Em poucos anos, o aprendizado sofre as conseqüências, alerta a psicóloga Lorene Busquin, do colégio Miraflores, no Rio de Janeiro. A criança que não experimentou o próprio corpo nos primeiros anos de vida, que não correu, não pulou, fica com déficits no desenvolvimento motor. Lá na frente, eles interferem na coordenação motora final, fundamental para a alfabetização." O mesmo se repete no campo emocional, diz Marilena: "Quem não brinca deixa de desenvolver áreas do cérebro responsáveis pela afetividade e sociabilidade. Terá dificuldade para se relacionar e não saberá lidar com as emoções, deficiências que só se recuperam com muita terapia". Reflexos de outro tipo são verificados nos consultórios médicos. Segundo John Richer, os países desenvolvidos são vítimas de uma verdadeira epidemia de doenças alérgicas, causada em parte pela falta de exposição a elementos - quando não se entra em contato com a boa e velha "vitamina S", de sujeira, o sistema imunológico não amadurece plenamente. "Os ambientes estão limpos demais. A sujeira do solo contém incontáveis microrganismos essenciais à vida." O fenômeno também chegou ao Brasil, garante a imunologista Ana Paula Moschione Castro, de São Paulo. "Cerca de 20% das crianças já apresentam doenças alérgicas, um número assustador. Entre as causas, está o aumento das atividades em locais fechados. Passamos mais de 90% do tempo em ambientes repletos de ácaros."
Atribuir esse confinamento às limitações da vida moderna, colocando toda a culpa na violência urbana e nos apartamentos pequenos, na opinião de Luci, é uma atitude simplista. "Estamos contaminados pelo modo de vida eletrônico. Os games substituíram as brincadeiras - e a falta de espaço, a meu ver, é o de menos. Curitiba é famosa pelos parques e áreas verdes, mas vejo poucas crianças brincando neles. Tenho alunos que vivem em casas e não conhecem o próprio quintal." Para agravar a situação, os pais se encantam ao constatar que os filhos dominam o controle remoto, o computador e as mais complexas engenhocas e acabam achando que já não se interessariam por distrações mais simples. Um equívoco, na opinião de Paula Ruggiero, coordenadora pedagógica da escola infantil Grão de Chão, em São Paulo: "O corre-corre e a amarelinha ainda fazem sucesso". Ela fala com conhecimento de causa. Diariamente, vê a criançada de 1 ano e meio a 6 anos se divertir no pequeno quintal de terra batida, sombreado por árvores cujos troncos estão gastos de tanto sobe-e-desce - em 21 anos, garante, nunca houve acidentes, salvo um ou outro joelho ralado. "Esse aprendizado é cultural, precisamos incentivá-lo."
O intervalo entre as aulas, na Anjo da Guarda, também é hora de aprender a brincar. Em cada um dos nove pátios, um professor propõe uma atividade fora de moda - tem até bambolê e perna-de-pau. "As crianças escolhem, mas precisam desse empurrão porque não dispõem de repertório. As sugestões costumam agradar", afirma Luci. Dia desses, ela presenciou uma cena que deixaria muito adulto de queixo caído. "Flagrei garotas da 7a série, de 13 anos, se divertindo na casinha de bonecas. Elas ficaram sem graça quando me viram. As meninas dessa faixa etária, hoje em dia, têm vergonha de brincar. Para deixá-las à vontade, entrei na brincadeira e rimos pra valer", conta. Para Nylse, isso acontece porque nem as crianças conseguem distinguir o que realmente gostam do que é imposto. "Elas estão espelhando a pressão da mídia e da família. Como não têm oportunidade para descobrir seus sonhos genuínos e expressá-los, refletem o que foi projetado."
Uma pesquisa do Datafolha feita em 2003 com 329 alunos de escolas públicas e privadas de São Paulo, entre 7 e 12 anos, confirma a tese: apenas metade deles declarou que brincar era a atividade favorita. "Fiquei alarmada com o resultado, somente crianças doentes ou oprimidas não gostam de brincar. Acredito que, elas respondem o que os pais gostariam de ouvir - tanto que 24% disseram que preferem estudar e 27% que já estão pensando na profissão." A interferência do adulto, avalia, também é evidente em loja de brinquedos. "Conferimos valor aos produtos, consciente ou inconscientemente. E, não raro, nos surpreendemos ao ver que a criança se diverte mais com a caixa de papelão. Quanto mais pronto o brinquedo, mais aborrecido." Com esse argumento, a atriz e diretora de teatro carioca Karen Acioly, 40 anos, conseguiu convencer o filho Ciro, 16, de que videogame não é gênero de primeira necessidade. Quando ele tinha 8 anos e pediu um de presente, respondi que, ao manipular brinquedos eletrônicos, a gente só pensa que está brincando. E que brincar de verdade é muito melhor. Sei que ele joga eventualmente na casa dos amigos, mas não é viciado e não se sente excluído", conta. Hoje, ela faz a mesma campanha com a caçula, Dora, 5 anos. "Toda sexta de manhã, antes da escola, tem a festa da boneca aqui em casa, com um lanche rápido na pracinha do prédio." Mesmo quando não pode estar presente, Karen sai para o trabalho com a sensação de dever cumprido. "Nossos desafios são muito maiores do que os de antigamente. Se preciso trabalhar em casa, espero que todos durmam primeiro. Descanso menos, namoro menos, mas somos mais felizes assim." A jornalista carioca Christina Martins, 40 anos, criou até um site, o http://www.amigasdapracinha.com.br/, para agitar a vida social de Carolina, 6. Mesmo que só consiga levar a menina à praça uma vez por semana, ela inventa moda para garantir que ninguém sofra de tédio. "Temos até um evento regular, o Sebinho nas Canelas, para que as crianças troquem livros já lidos. É uma curtição." Como vive em um edifício sem área de lazer ou vizinhos da idade da filha, ela também providencia animadas festas do pijama. "Convidamos duas ou três meninas para dormir em casa. Fazemos pipoca e é sempre aquela farra."
Não dá para fechar os olhos diante da realidade. Brincar é fundamental, mas a televisão e o computador já são parte da infância - e em caráter definitivo. Os números comprovam: segundo pesquisas da MacCann-Erickson, 63% das crianças das classes A/B, com menos de 12 anos, têm TV no próprio quarto e passam quatro horas diárias diante do aparelho. A boa notícia é que a telinha só assume o papel de vilã da história se você permitir. A televisão e o videogame são inevitáveis, o progresso está aí. Cabe aos pais iteragir, selecionar a programação, sentar no sofá ao lado do filho e conversar a respeito do que se vê. “Deve ser mais um ritual em família”, defende Marilena Martins. A psicanalista Ana Olmos, membro do conselho de acompanhamento da programação de rádio e TV da Câmara Federal concorda: "É um veículo maravilhoso, apaixonante se for usado corretamente. O conteúdo deve respeitar a faixa etária e a rotina da criança, além de não tratá-la como mera consumidora". Quem abre mão dessa tarefa, ela afirma, deixa o filho na mira da artilharia pesada: "A maior parte da programação infantil é idealizada sob o prisma do consumo. O pequeno telespectador se torna consumidor não só de brinquedos e biscoitos, mas de um projeto de vida pobre. Ele cresce acreditando que a imagem é o que importa".
Exposta desde cedo a personagens e tramas cada vez mais sensuais, a criança também tende a abandonar os brinquedos precocemente. Com cerca de 9 anos, já se considera pré-adolescente e se volta para outros interesses - segundo pesquisa do Instituto Ipsos Marplan, a turma de 10 a 12 anos só quer saber de carros, viagens, computação e informática, gente famosa, esportes, ciência, tecnologia e moda. O fenômeno se reflete na indústria de brinquedos. "Nosso público sofre uma forte pressão social para se tornar adulto antes do tempo, fazendo com que o mercado encolha. É assim no mundo inteiro, mas aqui, no Brasil, a erotização nos meios de comunicação acelera ainda mais o processo", atesta Aires José Leal Fernandes, diretor de marketing da Estrela. Separar o joio do trigo é mais simples do que parece. Comece observando os valores que permeiam as séries e desenhos animados a que seu filho assiste, como faz o pedagogo paulistano Pedro Paulo Demartini. Ele trabalha há quase três décadas na assessoria educacional da TV Cultura com a incumbência de analisar o conteúdo da programação infantil da emissora - e intervir, se for o caso. Preconceitos de qualquer natureza não devem ser tolerados", explica. Programas que destacam atitudes solidárias e harmoniosas são sempre recomendados, mas convém evitar aqueles que pintam o mundo com cores tênues demais. "É importante também mostrar que os conflitos existem e podem ser resolvidos com tranqüilidade. Personagens bonzinhos o tempo inteiro são irreais."
Os dramas, abordados com cuidado, têm seu lugar - desde que você leve em conta que cada criança reage de um modo a eles. "Na série com bonecos Cocoricó, por exemplo, já falamos da morte como um fenômeno natural, para que o público compreenda que ela faz parte da vida, pense e elabore os sentimentos sem se assustar." A professora curitibana Erica Mello, 23 anos, não veta nenhum tipo de programa. Amanda, 5 anos, pode assistir às notícias mais dramáticas dos telejornais com a condição de que a mãe ou o pai estejam ao lado. "Meu marido prefere que ela não fique na sala, mas eu discordo. Quero que minha filha conheça o mundo real. No fim, mostramos o que consideramos certo ou errado." Já a advogada paulistana Lourdes Campos, 45 anos, mãe de Luísa, 6, e André, 4, controla o televisor com mão de ferro. "Não permito que vejam apresentadoras com roupas apelativas e programas que não tenham nenhum valor interessante para ensinar. Sou obrigada a repetir meus argumentos 365 dias por ano, mas educar é isso mesmo."
O vocabulário é outro item a considerar - como a criançada costuma sair pelas ruas repetindo os bordões que ouve na TV, marca ponto o programa que aproveita a deixa e apresenta palavras novas. Não pense, contudo, que conteúdo educativo deve ser chato. "Nada pode ser técnico, científico, formal, como uma aula tradicional - ou a criança se desinteressa. Mais do que informar, a TV tem de despertar a curiosidade, fazer com que ela queira saber mais", defende Pedro Paulo. O mesmo vale para a escolha do repertório musical. Acredite: as canções que seu filho escuta são muito mais do que pura diversão e interferem de verdade no desenvolvimento dele, especialmente nos cinco primeiros anos de vida. "Essa é a fase do destino. O que se registra nela fica gravado para sempre", afirma a arte-educadora Margareth Darezzo, de São Paulo, especializada em psicologia do desenvolvimento infantil. Ela dá aulas de iniciação musical e recomenda aos pais de seus alunos e aos orientadores de escolas que não se limitem a analisar os refrões - não basta que a mensagem seja edificante. "A letra educa quando se usa a mesma linguagem da criança, entra no universo dela naturalmente e recorre a temas voltados para a descoberta do mundo e para o autoconhecimento - não quando simplesmente é cantada em voz infantilizada e cultua ídolos." Com 16 anos de carreira e 20 CDs, a dupla Palavra Cantada, formada por Sandra Peres e Paulo Tatit, já se tornou referência em música infantil de qualidade. Seus discos foram adotados pela rede municipal de ensino de São Paulo, que patrocinou 500 apresentações gratuitas do grupo nas escolas. A receita deles? "Não menos prezamos a inteligência da criança com tentativas bobas de obter cumplicidade, o que só funciona por um tempo e depois cai no esquecimento", assegura Sandra. O músico Hélio Ziskind, responsável pela trilha sonora dos programas infantis da TV Cultura e autor do CD-livro BANHO É BOM (ed. Melhoramentos), lembra que o universo infantil é riquíssimo e não pode ser simplificado. "O que mais vemos são cantores que compõem para crianças que estão sempre em festa. Não lembram que elas precisam parar de vez em quando e se conectar a outros sentimentos."
Entre nessa também - Confira algumas sugestões para driblar as limitações de tempo e espaço.
"Crie um cantinho de brincadeiras em casa, nem que seja na sala ou na área de serviço. Não vai durar para sempre, em poucos anos a decoração volta a ser o que era - e esse investimento será bem recompensado no futuro." MARILENA MARTINS
"Leve seu filho ao parque pelo menos uma vez por semana. Mas não adianta soltá-lo enquanto você lê jornal - ele precisa da sua atenção. É fácil, basta que você se lembre da própria infância na hora de propor as brincadeiras." PAULA RUGGIERO
"O melhor brinquedo para a criança é o adulto disposto a brincar com ela. Mas não tente dirigir a atividade. Deixe que ela lidere o tempo todo." NYLSE CUNHA
Texto adaptado - Flávia Pinho
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